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Entre tradição e modernização: o São João de Campina e o orgulho de pertencer

  • Foto do escritor: Coletivo F8
    Coletivo F8
  • há 2 dias
  • 4 min de leitura
Bandeirolas enfeitando o início do Parque do Povo. Foto: Isabelly Rodrigues
Bandeirolas enfeitando o início do Parque do Povo. Foto: Isabelly Rodrigues

Em muitas cidades do Nordeste, quando o mês de junho se aproxima, o céu se enfeita de bandeirolas, o cheiro de milho e canjica invade as ruas, e o som da sanfona embala corações. Mas é em Campina Grande, no agreste paraibano, que essa atmosfera atinge seu ápice. A cidade conhecida por realizar "O Maior São João do Mundo" se transforma em um enorme arraial a céu aberto, onde milhões de pessoas se encontram para celebrar a cultura e a festa popular.

 

O que começou com celebrações simples nos bairros da cidade se tornou um dos maiores eventos multiculturais da América Latina, movimentando não só a tradição, mas também a economia, o turismo e a indústria do entretenimento.


Desde sua institucionalização como festa urbana tradicional em espaço unificado, na década de 1980, com a criação do Parque do Povo, o São João de Campina Grande tem passado por um processo intenso de transformação. A festa deixou de ser apenas uma expressão comunitária para se tornar uma engrenagem com muitas facetas, que envolve Parcerias Público-Privadas (PPPs), artistas de renome nacional, investimentos milionários e uma vasta programação que ultrapassa o calendário religioso.

 

O forró pé de serra, as quadrilhas juninas e os trios tradicionais continuam ali, mas agora dividem espaço com shows de pop, sertanejo, trap e axé, num espaço onde esses ritmos ganham destaque e maior tempo na grade de programação.


Esse fenômeno tem provocado debates: estaria o São João perdendo sua essência em nome da modernização? Ou estaria apenas evoluindo para se manter relevante em meio às novas dinâmicas culturais e mercadológicas? A reportagem ouviu vozes diversas, de historiadores a dançarinos de quadrilha; de veteranos a jovens frequentadores da festa, para entender como Campina Grande equilibra a preservação de sua identidade cultural com as novidades do mundo moderno.


A origem


O São João de Campina Grande tem suas raízes nas celebrações populares de bairro, com fogueiras nas calçadas, quadrilhas formadas por moradores e comidas típicas feitas em casa. Mas o processo de centralização e ampliação começou ainda nos anos de 1970, com a criação de uma palhoça no centro da cidade.


Segundo o historiador Erik Brito, a origem do São João campinense está nas manifestações espontâneas que ocorriam nos bairros e nas ruas da cidade, principalmente na Rua da Floresta. “Cada rua tinha sua quadrilha, fogueira e comidas típicas. Era um movimento orgânico, uma expressão genuína da cultura nordestina”, explica.


Foi em 1983 que o evento começou a ganhar uma identidade mais robusta, e em 1986, durante o governo de Ronaldo Cunha Lima, foi oficialmente batizado como "O Maior São João do Mundo". Um nome que não era apenas marketing mas uma projeção visionária de

um evento que ganharia grandes dimensões. 


A partir daí, a cidade passou a atrair turistas de todo o país e, com o tempo, internacionalizou sua festa. O São João deixou de ser apenas uma celebração tradicional e se tornou também um projeto de desenvolvimento econômico, cultural e turístico.


Ponte que interliga o Parque Evaldro Cruz e o Parque do Povo. Foto: Isabelly Rodrigues
Ponte que interliga o Parque Evaldro Cruz e o Parque do Povo. Foto: Isabelly Rodrigues

Ainda assim, como pontua Erik Brito, esse processo de transformação também significou o abandono gradual das manifestações mais autênticas. A vestimenta tradicional, por exemplo, passou a seguir um imaginário mais sudestino, como o chapéu de palha e roupas remendadas, enquanto o vestuário nordestino original, com chapéu de couro e linho branco, foi perdendo espaço.


“Para se adaptar ao público de massa, muitos elementos originais foram deixados de lado ou transformados em versões estilizadas.”

As manifestações de caráter mais cultural, como apresentações de trios de forró, por exemplo, seguem como elementos da tradição e espalhadas em pontos diversos como restaurantes, praças e pontos turísticos. São símbolos que sustentam a memória viva da identidade que resiste apesar do tempo e das transformações.





Tradição e modernização: um equilíbrio possível?


A cada edição, o Parque do Povo, espaço principal da festa aumenta sua capacidade de público e ganha novas estruturas. As atrações musicais estão cada vez mais diversificadas em sua programação. O crescimento é visível mas, junto com ele, surge uma dúvida recorrente: como preservar as tradições culturais que deram origem à festa diante de tantas transformações?


De um lado, há quem enxergue na modernização uma forma de democratizar o acesso à cultura e manter a festa viva para novas gerações. Nicolas Almeida, 20 anos, defende a diversidade de atrações e acredita que o São João atual é um reflexo do tempo em que vivemos, "O São João de hoje ainda carrega o que havia antigamente, mas com mudanças. Eu prefiro o de hoje”, afirma.


Show de Luan Santana no palco principal do Parque do Povo. Foto: Isabelly Rodrigues
Show de Luan Santana no palco principal do Parque do Povo. Foto: Isabelly Rodrigues

Por outro lado, a discussão sobre a perda de identidade é cada vez mais presente. O historiador Erik Brito questiona até que ponto a festa ainda representa as manifestações populares originais. Para ele, o São João centralizado e grandioso do Parque do Povo já nasceu com traços artificiais e comerciais. “A festa tradicional foi substituída por um espetáculo voltado ao consumo de massa”, afirma. Ele propõe a criação de um memorial do São João, com espaço para a memória cultural da festa e preservação de seus símbolos.


Quadrilhas: resistência da arte popular 


Mesmo diante da modernização, as quadrilhas juninas continuam sendo um dos pilares culturais da festa. O dançarino de quadrilha Bruno César destaca que a popularização das quadrilhas estilizadas tem atraído novos públicos, mas também trouxe desafios logísticos e financeiros. “Hoje, há quadrilhas que gastam mais de R$ 300 mil por temporada. Sem apoio das leis Rouanet e Aldir Blanc, seria inviável.”


 Dançarina da quadrilha Serra Bonita. Foto: João Robson
Dançarina da quadrilha Serra Bonita. Foto: João Robson

Ainda assim, Bruno vê a evolução de forma positiva. Para ele, a disputa entre tradição e inovação não é tão relevante quanto o sentimento coletivo proporcionado pela festa: “O turista não quer escolher entre o novo e o antigo. Ele quer sentir o clima do São João, e as quadrilhas fazem parte dessa experiência”.


Esse pensamento ecoa na fala Rostand Melo, 39 anos, frequentador de anos do Parque do Povo. Ele lembra que, apesar da valorização dos grandes shows no palco principal, as quadrilhas continuam sendo uma parte essencial da festa. “Acho que a gente está, de certo modo, afastando essa expressão cultural do centro da festa. O perigo é elitizar algo que é tão popular”, alerta.


Mesmo com impasses, as quadrilhas continuam encantando o público, sejam estilizadas ou tradicionais, elas representam o elo entre o passado e o presente, entre o forró e o teatro. E, talvez por isso, continuem sendo um dos momentos mais emocionantes e únicos do São João de Campina Grande.



Entre raízes e reinvenções


O São João de Campina Grande é um encontro entre passado e presente. Enquanto preserva tradições como as quadrilhas, o forró e a culinária típica, também abraça a modernização com grandes shows, estrutura profissional e visibilidade nacional.


As opiniões se dividem: para uns, a modernização é necessária para manter a festa viva; para outros, há o risco de perder a identidade. Mas uma coisa é certa: a força do São João campinense está justamente em sua capacidade de se reinventar sem esquecer suas raízes.


Visão de fora da pirâmide do Parque do Povo. Foto: Isabelly Rodrigues
Visão de fora da pirâmide do Parque do Povo. Foto: Isabelly Rodrigues
"A festa continua sendo um grito de resistência da cultura nordestina, mesmo quando dialoga com o mercado e globalização", resume Cléber Oliveira, apresentador oficial do evento.
Expediente:

Reportagem: Isabelly Rodrigues

Supervisão Editorial: Rostand Melo e Ada Guedes




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