O debate sobre a legalização e regulamentação dos jogos de azar no Brasil ganha cada vez mais espaço na agenda pública. No entanto, além das questões econômicas e legais, o impacto devastador do vício em jogos de azar sobre a vida dos jogadores e de suas famílias segue como um problema muitas vezes negligenciado.
Uma Perspectiva Histórica
Os jogos de azar fazem parte da história humana, desde arenas romanas até os cassinos de luxo modernos. Com a ascensão das apostas online e jogos virtuais, o problema do vício ganhou novos contornos, criando uma crise social que exige atenção urgente às lacunas legais e às políticas públicas.
O sociólogo Tiago Fernando Alves, especialista em sociologia do consumo, destaca que, a partir do século XX, os jogos passaram de elementos de entretenimento estatal e aristocrático para produtos da lógica de mercado, sobretudo, nos Estados Unidos. “Na era Thatcher e Reagan, os jogos foram privatizados e tornaram-se focados no lucro”, explica. Segundo ele, a digitalização intensificou os desafios, dificultando a regulamentação de empresas offshore que movimentam bilhões sem transparência.
Ele finaliza com uma crítica às estruturas neoliberais, que simplificam e privatizam aspectos complexos da vida humana.
“O vício em jogos é apenas um ponto dentro de uma engrenagem maior, que privatiza não só a cultura, mas também a subjetividade das pessoas, gerando transtornos sociais e individuais graves.”
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O Vício: Uma Nova Epidemia
O vício em jogos de azar é impulsionado por mecanismos neurológicos e sociais. A busca incessante pela “grande vitória” gera um ciclo de prazer e frustração, alimentado pela dopamina, que dificulta o abandono do hábito. Para muitos, o jogo começa como lazer, mas rapidamente se torna compulsão, levando a prejuízos financeiros, emocionais e familiares.
Especialistas alertam para os riscos da normalização do vício, especialmente entre as novas gerações, expostas a jogos digitais e apostas acessíveis com um clique. A promessa de ganhos rápidos transforma o jogo em uma fuga imediata, agravada por um contexto de desigualdade social e frustração econômica.
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O Ciclo da Dependência
Os jogos de azar, que muitas vezes começam como uma forma de entretenimento, podem evoluir para um comportamento compulsivo. A psicóloga Elzenir Maria Carvalho Rodrigues explica que:
"Os sinais que revelam que uma pessoa está desenvolvendo um vício em jogos de aposta incluem conflitos familiares, isolamento e prejuízos financeiros e emocionais. Quando a família percebe e tenta conversar, a tendência dessa pessoa é negar e se envergonhar, pois ela já reconhece que perdeu o controle. Isso gera um isolamento não apenas físico, mas também emocional e social."
Elzenir também destaca que esse ciclo vicioso muitas vezes leva à ansiedade grave, depressão e prejuízos cognitivos. Segundo ela, o jogador compulsivo sente um forte sentimento de culpa ao perceber os danos causados à família e a si mesmo.
"O vício em jogos de azar está associado a um condicionamento mental que faz o indivíduo repetir continuamente os atos de aposta. Ele pensa: ‘Preciso jogar para recuperar o que perdi’. Isso cria uma dependência mental e emocional que pode ser extremamente difícil de romper sem ajuda profissional e apoio familiar", explica Elzenir.
Esse comportamento leva à deterioração de relacionamentos, à perda de emprego e a dívidas crescentes, agravando ainda mais o estado psicológico do jogador.
Caminhos para a Recuperação
Segundo Elzenir Maria, a recuperação começa com um momento de conscientização, quando o jogador reconhece o impacto negativo do vício.
"Ele precisa perceber que está se autodestruindo e prejudicando sua família. Esse insight é o primeiro passo para buscar ajuda."
A psicóloga recomenda uma abordagem multifacetada, incluindo: 1. Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), que ajuda o indivíduo a desenvolver novos hábitos, superar pensamentos negativos e ter um novo olhar sobre si mesmo, sua família e seu futuro; 2. Fortalecimento da vida espiritual, pois como afirma a psicóloga, "um espírito fortalecido ajuda a mente e o corpo a restabelecer o controle. O apoio na fé, seja qual for a crença do indivíduo, é essencial para fortalecer a mente; e 3. Atividades físicas e lazer, a prática de esportes auxilia na disciplina e trabalha o desenvolvimento da determinação.
Elzenir também enfatiza que o apoio familiar é crucial nesse processo, mas o jogador precisa tomar a decisão de mudar por conta própria.
"Enquanto a família insistir sem que ele reconheça a gravidade da situação, dificilmente ele conseguirá avançar no tratamento."
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A Ascensão no Brasil e O Desafio da Regulação e Fiscalização
No Brasil, os jogos de azar são regulamentados pela Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941), uma legislação desatualizada que não contempla o crescimento das apostas digitais. A falta de regulamentação eficaz favorece abusos e fraudes, dificultando o controle sobre casos de vício.
Estudos mostram que jogos rápidos e de recompensa imediata, como caça-níqueis e apostas esportivas, são os mais propensos a gerar dependência. Com o aumento do acesso à internet, os jogos online tornam-se uma porta de entrada para novos apostadores, enquanto mecanismos de controle e suporte permanecem insuficientes.
Uma regulamentação eficaz dos jogos de azar no Brasil enfrenta barreiras significativas. Apesar da existência de órgãos como a Secretaria de Supervisão de Apostas e o Ministério da Fazenda, a fiscalização é insuficiente para acompanhar a rápida expansão do mercado, especialmente no âmbito digital.
Uma legislação moderna poderia não apenas aumentar a arrecadação pública, mas também proteger os consumidores, impondo regras claras para licenciamento, fiscalização e jogo responsável. Além disso, tecnologias de monitoramento e punições severas para empresas desonestas seriam cruciais para criar um mercado mais seguro.
Impactos Sociais, Falta de Responsabilização e a Luta Contra o Estigma
O vício em jogos de azar não é apenas um problema individual, mas uma questão de saúde pública e bem-estar social. A ausência de regulamentação resulta em custos elevados para o sistema público de saúde e programas de assistência social. Enquanto isso, empresas de jogos exploram o mercado desregulamentado, muitas vezes sem oferecer suporte aos jogadores afetados.
O estigma associado ao vício agrava ainda mais o problema. Muitos indivíduos relutam em buscar ajuda, perpetuando o ciclo de destruição financeira, emocional e social. Muitos que sofrem com o problema têm medo de buscar ajuda, agravando ainda mais sua situação.
Organizações internacionais sugerem que o Brasil siga exemplos de países como o Reino Unido, onde políticas de prevenção e tratamento caminham lado a lado com uma regulamentação sólida. Isso inclui a criação de linhas de apoio, restrições de marketing para operadores, campanhas educativas e investimentos em programas de reabilitação.
Conclusão: Um Jogo de Alto Risco
Os jogos de azar podem ser uma fonte de entretenimento e geração de renda, mas sem regulamentação adequada, tornam-se um risco social e econômico. O Brasil tem a oportunidade de equilibrar liberdade de mercado com proteção ao consumidor, mas isso exige legislação moderna, fiscalização eficiente e investimentos em suporte aos jogadores.
Sem essas mudanças, os efeitos do vício em jogos de azar continuarão a crescer, gerando impactos irreparáveis na saúde financeira, emocional e social de milhões de brasileiros.
EXPEDIENTE
Fotografia: Camille Santos, Kaio Oliveira, Jayne Freire, e Agamenon Lima
Redação: Kaio Oliveira
Entrevistadores: Kaio Oliveira e Camille Santos
Produção: Camille Santos
Revisão: Jayne Freire e Agamenon Lima
Monitoria: Bianca Dantas e Cecília Sales
Supervisão editorial: Rostand Melo e Ada Guedes
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