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  • Ariely Barbosa, Clara Deodato, Glória Borges e Polyany B.

A história de vida de um ex-combatente com 100 anos de idade

No ano de seu centenário, o ex-combatente José Cícero de Araújo revela qual o segredo para a longevidade em meio a tantas adversidades

José Cícero ao lado dos seus quadros de honrarias e recordações da Segunda Guerra.
Por: Clara Deodato

"Zé de Nêga", como é conhecido popularmente, reside na mesma casa desde seu nascimento em 04 de novembro de 1923. Ele mora no sítio Alto do Balanço, zona rural do município de Santo André, no interior da Paraíba. Divide seus dias com a esposa Olívia e sua filha Catarina. No auge dos seus 99 anos, sem auxílio de óculos nem aparelhos auditivos, demonstra grande lucidez ao revelar detalhes de todas as suas vivências no cenário de guerra na década de 1940, quando foi enviado à Itália como pracinha da Força Expedicionária Brasileira (FEB).


INFÃNCIA E FAMÍLIA


Devido à grande dificuldade financeira e material da época de sua infância, José Cícero diz que quando criança não tinha pretensões nem sonhos para o futuro. Suas lembranças mais vivas são de quando trabalhava arduamente na agricultura. Teve somente um irmão e lembra da boa convivência, os dois foram criados por sua mãe e seus tios, já que o pai havia deixado a família e ido para o Rio Grande do Norte.


José disse que quando mais jovem, uma cigana havia pedido para ler sua mão e lhe revelou que ele se casaria tardiamente, e assim aconteceu, casou-se aos seus 51 anos, em 07 de dezembro de 1974 com Olívia aos seus 33 anos. Da união, tiveram 3 filhos. O primeiro nasceu sem vida, e os outros dois residem no mesmo município, Marcos Emanuel e Catarina Hozana. O casal tem somente uma neta chamada Vitória.


RELIGIOSIDADE


A fé de José é observada por todos os cantos do antigo casarão, um cômodo ao lado da sala, chamado de oratório, acomoda diversas imagens de santos e importantes figuras da igreja católica. Por todas as paredes há quadros e crucifixos que ressaltam suas crenças. Sua comunhão é feita a domicílio no final de semana pela manhã, enquanto escuta atentamente as palavras do evangelho. De pé, fica em silêncio como se estivesse ouvindo a própria voz de Deus. Ao seu lado, Olívia também recebe o sacramento de cada domingo e segue compartilhando os dias, afetos e a fé. Atenta e cuidadosa com José, sorri quando ele diz que a demora em encontrar uma esposa valeu a pena.




PADRE CUSTÓDIO, CASARÃO E AS RUÍNAS DA IGREJA


No final do século XVIII, um chamado padre Custódio Luís de Araújo e Souza veio com a irmã e um sobrinho de Portugal para a cidade de Taperoá, no cariri paraibano. O religioso também era comerciante e possuía uma Bodega na referida cidade.


Nessa época, a ação dos cangaceiros era frequente e os confrontos armados eram comuns. Certo dia ocorreu um tiroteio perto da residência em que vivia Custódio e sua família, uma bala veio a atingir sua irmã, que acabou falecendo. Essa situação gerou um grande desconforto e fez com que o padre resolvesse vender tudo que possuía e ir morar em São João do Cariri.


Chegando lá, decidiu que queria comprar um terreno, e assim o fez, achou um lugar que pertencia a família Bezerra, chamado de Fazenda Balança, no território que hoje pertence ao município de Santo André. Comprou a área e ao chegar lá começou a construção de uma igreja com a padroeira Nossa Senhora das Dores. José se recorda claramente dessa época e das missas muito frequentadas por populares.


O Padre era um benfeitor na região, criou muitas crianças, e também ajudou na criação de José. Hoje, residindo no antigo casarão da fazenda, lugar em que nasceu, traz como memória afetiva essa história sempre lembrada pelas ruínas da igreja iniciada por Padre Custódio que ficam bem em frente à casa de José.



Ruínas da Igreja no Sítio Balança. Por Glória Borges.

CONVOCAÇÃO


Empregado de algumas fazendas na região, os serviços de José Cícero eram muito bem-vistos pelos patrões, sobretudo por sua disposição e disciplina. Aos 20 anos, recebeu a notícia que teria sido convocado para servir ao exército brasileiro. O território em que vivia era, na época, distrito da cidade de São João do Cariri e a quantidade de pessoas que seriam chamadas eram repassadas para essas cidades. A seleção era por sorteio e um dos sorteados foi José. Ele lembra que houve muita tristeza por parte dos familiares e das pessoas do lugar em que trabalhava, depois que receberam a notícia.


Após a convocação, ele e os companheiros foram para o quartel localizado na cidade de Campina Grande, na época chamado de 40º Batalhão de Caçadores, o 40º BC. Em seguida foram transferidos para Natal-RN. Juntamente com dois conterrâneos, Antônio Aurora e Elizier Brás, seguiu para o Rio de Janeiro, que era a capital do Brasil na época. Lá fez todos os exames necessários e seguiu para a cidade de Nápoles, no sul da Itália. A viagem era pelo oceano e durou cerca de 15 dias, segundo ele, era uma embarcação enorme e confessa que se perdeu algumas vezes dentro do navio.


Por: Clara Deodato

SEGUNDA GUERRA MUNDIAL


A guerra já estava em curso quando José e seus companheiros chegaram à Itália. Após saírem do Brasil, os navios passavam no Estreito de Gibraltar. O lugar que desembarcaram não apresentava nenhum perigo, todos ficaram em colégios que outros chamavam de quartéis, segundo José.

Após saírem de Nápoles, os combatentes ficaram em acampamentos no meio do mato. Foram 7 meses e 17 dias, na Europa, servindo ao quinto exército norte-americano, já que o exército brasileiro havia sido incorporado. O comandante chamava-se Mark Clark.


O ex-combatente lembra que lá não se falava em mortos para não amedrontar aos demais. Para ele, a fé em Deus era sua maior companhia e o que não permitia que ele sentisse medo. José Cícero foi convocado como artilheiro, mas, como os alemães não tinham mais arcabouço aéreo, acabou atuando na infantaria. Afirma que se fosse convocado estaria de prontidão para servir novamente, "Às vezes a pessoa diz: e se o senhor fosse convocado, o senhor iria?" Eu digo: tô pronto!".


Das muitas histórias vividas em combate, o que lhe vem à mente está muito mais ligado à sua essência pacificadora do que a qualquer outra coisa. Conta que os soldados eram instruídos por seus superiores a não interagirem com os civis, mas ele ignorava e cansou de visitar civis e aceitar os convites que lhe eram feitos para almoço e jantar.


Quando indagado se sentiu medo, ele afirma "Não, não podia"

NOME DE GUERRA


Uma curiosidade típica de quando se fala em front é sobre o nome de guerra, José Cícero era chamado de "530" na Itália, no Brasil era "66", e revela que vez por outra os combatentes eram chamados pelo nome, ou somente pelo sobrenome. Eles carregavam uma espécie de medalha/pingente luminoso por dentro da camisa, na região da cintura, e quando havia dúvida na nacionalidade do soldado se mostrava esse artefato. Pois lá, "[...] ou matava ou morria, então ninguém confiava em ninguém".

"Lá (na guerra) ou matava ou morria, então ninguém confiava em ninguém."

A VIDA PÓS COMBATE


Quando retornou, José não voltou mais na agricultura, passou a ser funcionário do DCT (Departamento de Correios e Telégrafos) onde trabalhou durante 11 anos. Conheceu sua esposa nesse período, construiu sua família e hoje é aposentado como 2º Tenente do exército brasileiro.


José Cícero revela que o segredo para a sua longevidade é ter calma. "Tenham calma! Eu sempre digo: tenham calma! Porque a gente com calma vence tudo", seus traços de sabedoria transparecem a cada palavra, em suas mãos a aliança reluz como símbolo da união que cativa como dádiva de Deus, sua trajetória não é só exposta nas paredes, mas também em seu coração que transborda devoção.

Tenham calma! Eu sempre digo: tenham calma! Porque a gente com calma vence tudo


Confira mais fotos no slideshow:


 

FICHA TÉCNICA

Supervisão editorial: Ada Guedes e Rostand Melo


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