Natural de Niterói, Rio de Janeiro, a brasileira nascida em 27 de julho, tem 23 anos e recebeu o apelido de tratora. Lésbica, favelada e preta, ela tem passado por cima de todo o preconceito, enfrentado dificuldade para se firmar como lutadora, mas também galgado um processo de evolução contínuo, pessoal e profissionalmente. Com toda a modéstia e simpatia, Tamires Vidal, ou, Tamires Tratora, mostra que o mais importante é seguir em frente, com positividade, foco e bondade no coração.
Confira a seguir a entrevista com a atleta que partiu das comunidades de Niterói para conquistar espaço no disputado mundo do MMA.
Gabriella Gomes - Por que “Tratora”?
Tamires Tratora - Esse apelido foi escolhido quando eu jogava futebol, futebol masculino. Quando eu jogava com meu tio. Eu jogava no meio dos homens e eu passava por cima deles. Por isso veio o apelido ‘Tratora’. Foram eles que colocaram esse apelido em mim.
Tem pessoas que confiam em mim. Isso me deixa forte! As pessoas da comunidade também. Niterói me deixa forte, as crianças que têm um sonho igual ao meu.
Gabriella Gomes - Como ocorreu o encontro entre você e o MMA?
Tamires Tratora - Na época, foi muito difícil, minha mãe não tinha condições de pagar uma academia para mim. Demorou bastante para chegar até aqui, né. Mas graças a Deus, Deus sabe de todas as coisas. Todo o meu sacrifício, o meu esforço também. Consegui um pouco tarde, eu tinha 14 anos quando comecei a treinar o esporte. Comecei no muay thai (boxe tailandês) e minha mãe me tirou, porque não tinha condições de pagar para mim. E depois, com 18 anos, comecei a praticar o esporte o MMA. Aí sim, minha vida começou a evoluir.
Gabriella Gomes - Começou a partir de um projeto social?
Tamires Tratora - Sim, eu comecei através do projeto social. Comecei no Palácio de Cristo que é onde eu moro agora, que fica no Palácio, no Ingá. E com isso, eu conheci o meu professor Jadil, faixa preta, ele me indicou. Meu mestre, que eu o tenho como um pai e está me ajudando nessa caminhada do MMA.
Gabriella Gomes - Quais foram suas maiores dificuldades durante os treinamentos?
Tamires Tratora - Ah, eu acho que as dificuldades vieram, pois eu trabalho como ajudante de obra e tenho que fazer os dois ao mesmo tempo. É por isso que eu me mantenho dentro da minha casa, eu tenho que me alimentar, sou ser humano. Trabalhar com obra e vir treinar fica muito cansativo para mim. Eu fazendo uma luta internacional as coisas clarearam bastante na minha vida. Sei que minha vida vai melhorar, tem pessoas que confiam em mim dentro da academia. Isso me deixa forte! As pessoas da comunidade também. Niterói me deixa forte, as pessoas, as crianças que têm um sonho igual ao meu e está realizando isso dentro da minha comunidade que me deixa mais forte ainda, porque várias vezes já pensei em desistir porque eu tenho que trabalhar. Quem trabalha com obra sabe que é cansativo. Ter que vir para o tatame treinar, ir para casa e no outro dia tem que trabalhar com obra. Mas eu penso nas crianças. E isso me deixa forte. É só questão de botar minha cabeça no lugar e pensar bem no que eu quero, não olhar para trás. Olhar para as crianças me vendo lutar e trazer uma vitória para comunidade enquanto vejo as crianças vindo me abraçar, não tem preço.
Nesse mundo tem bastante preconceito pela nossa cor, ser negra e ser lésbica eu estou ferrada, né? Mas eu amo ser quem eu sou e estar representando o meu Brasil. Eu não mudo por causa de ninguém! Eu amo mulher, eu gosto de ser mulher! Então isso é o que importa para mim.
Gabriella Gomes - Como se sente hoje sabendo que está no ranking mundial das melhores do mundo?
Tamires Tratora - É maravilhoso saber que eu estou no ranking mundial das melhores mulheres do mundo! E saber que estou quase ali. Vou trabalhar bastante para chegar a número um, né? Que é perto da Amanda Nunes, a leoa. Eu tenho um carinho muito grande por ela e para mim é uma honra tá representando todas as mulheres de Niterói, da comunidade também, e para mim é uma honra estar representando meu país. Isso para mim não tem preço.
Gabriella Gomes - Como foi lutar com uma oponente tão preparada fora do país?
Tamires Tratora - A gente recebeu essa notícia em cima da hora, mas eu já estava treinando, não estava parada, estava treinando duro também. E ter que lutar na casa dela, eu acho que foi um pouco complicado, porque a mulher era estrelinha da casa e eu saio da minha área de conforto e lutar num lugar que eu não saberia nem como seria o fuso horário. Quando cheguei lá, me senti um pouco desconfortável, por causa do fuso horário. Isso me deixou um pouco mal, porque eu só conseguia dormir na parte manhã, na parte clara, e meu pai ficou preocupado com isso, porque eu não estava conseguindo dormir, eu já estava ficando com os olhos fundos por causa do fuso horário e também da alimentação. Não me adaptei a água de lá e fui passando mal. Foi graças a Deus que consegui fazer uma boa luta e é só gratidão mesmo.
Gabriella Gomes - Além de carregar a bandeira de mulher da comunidade, mulher preta, você ainda carrega a bandeira LGBTQI+. Como é representar essas comunidades?
Tamires Tratora - Eu sei que nesse mundo tem bastante preconceito pela nossa cor, ser negra e ser lésbica eu estou ferrada, né? Na visão, mas eu amo ser o que eu sou, eu amo quem sou eu, ser lésbica e estar representando o meu Brasil. Há muita dificuldade às vezes dentro de casa mesmo, só por ser lésbica. Mas eu amo quem eu sou! Eu não mudo por causa de ninguém! Minha origem, quem eu sou. Eu gosto de mulher mesmo! Gosto muito, então isso não vai mudar. Jamais! Eu amo mulher, eu gosto de ser mulher! Então isso que importa para mim.
Gabriella Gomes - Houve algum empecilho durante a sua trajetória no MMA?
Tamires Tratora - Não, porque esse é o meu sonho desde criança, de lutadora de carregar minha bandeira e ganhar um cinturão. O meu maior sonho é chegar no UFC (Ultimate Fighting Championship). Enquanto eu tiver força, saúde e garra, que é o que eu tenho dentro de mim. Então acho que ninguém vai me parar. O único que pode me parar é Deus, mas se ele quer assim então eu vou continuar.
Gabriella Gomes - Durante sua luta na Europa, em algum momento sentiu que poderia não vencer? O que te fez perseverar?
Tamires Tratora - Sim. Quando estava no avião, assisti algumas lutas da minha oponente. Comecei a pensar que ela era melhor do que eu, que não ia conseguir. Fiquei com esse pensamento na cabeça, com essa pressão. Mas quando eu cheguei lá e eu já fui passando mal, pensei: ‘caramba! O que eu tô fazendo aqui? Será que eu vou conseguir?’. Mas depois pensei nos meus sobrinhos, na minha família, nas crianças, o que me deu forças e fui à frente. Então, pensei nessas coisas, mas eu treinei duro para estar lá. Meus treinadores, meus familiares de tatame confiam em mim, na minha garra e tudo que eu passei também lá atrás e foi uma história ruim, uma coisa muito amarga para mim. Esses pensamentos me deixaram forte. Ouvir minha mãe dizendo que eu não ia conseguir me deixou bastante forte para eu ir atrás do meu sonho e mostrar para ela que ela estava errada. Isso é que me motivou, me deu forças e eu tinha certeza de que eu ia ganhar. Como eu falei para o meu pai, que é o mestre que tenho como pai hoje em dia, disse para ele: ‘eu não fui lá para o passeio. Fui para trabalhar. mostrar o que eu treinei aqui no Brasil. Posso sair toda machucada, mas eu vou voltar com a vitória pro Brasil’. Quando eu estava passando mal, ele ficou um pouco abatido, mas olhei dentro dos olhos dele e falei: ‘pai, eu tô bem, eu tô bem’ e fui à luta porque a vida é assim: às vezes a gente cai. Mas lá não, eu estava com a cabeça erguida e sabia que eu ia voltar com a vitória. Porque eu acredito em Deus, ele já tinha me mostrado em sonho. As coisas iriam melhorar também, por tudo que eu já passei. Eu sou uma pessoa boa, eu tenho um coração bom, ajudo pessoas. E Deus só me retribui. Só isso, nada mais.
Gabriella Gomes - Qual foi a sua melhor luta? Por que essa foi a que mais te marcou?
Tamires Tratora - Minha melhor luta foi no jiu-jitsu, porque foi onde eu comecei. Era uma arte marcial que eu achava que eu não e acabei me dando bem. Eu comecei na faixa branca e já tô na faixa marrom, graças a Deus. Minha primeira luta foi muito emocionante, foi de faixa branca, eu tinha um mês de treino e fui lutar no campeonato, foi no clube Fonsequinha. Minha mãe me prometeu que ia na minha luta e me deixou lá e foi para casa com meu padrasto. Eles me prometeram que iam me ver e me deixaram lá. Isso só me fez ficar forte para ganhar essa luta, essa batalha. Dentro de mim também, me ensinou a ser uma pessoa melhor, porque através do esporte você ganha disciplina, né. Eu era muito nova, então o esporte me trouxe a disciplina, me ensinou como tratar as pessoas, ajudar as pessoas. Naquela minha primeira luta eu aprendi a disciplina e ganhei de 19 a 0, sem saber nada. Consegui fazer uma boa luta, ganhei minha medalha, cheguei em casa e mostrei para a minha mãe. Ela ficou muito emocionada, sentiu muito porque me deixou na porta e não assistiu, ficou comovida. Eu fiz o meu trabalho e tenho muita gratidão a Deus por ter me colocado no esporte, por tudo que ele faz na minha vida.
Gabriella Gomes - Qual o seu objetivo central no MMA?
Chegar no UFC. Ser a número um do ranking da minha modalidade, que é o peso pena. Ser visada como a melhor do mundo, que as pessoas possam me olhar e possam falar ‘eu quero ser parecida com ela. Quero chegar aonde ela chegou. Se ela chegou, eu posso chegar também.
Gabriella Gomes - Se não o MMA, em qual outro esporte você iria se encontrar melhor?
Tamires Tratora - Futebol. Eu amo futebol, parei de jogar há pouco tempo, porque quando você tem um cargo de profissional, na parte da sua luta do MMA você precisa ser profissional. Tem que saber dosar, saber o equilíbrio entre corpo e mente. Eu amo jogar bola! Eu parei de jogar bola também porque eu perdi minha amiga há pouco tempo, a Gisele. Ela já estava comigo na zaga e com isso, eu parei de jogar bola, porque ela fechava comigo 10 a 10 na zaga. Eu a perdi, então para mim não existe mais futebol. Por esse motivo nunca mais botei a bola no pé.
Gabriella Gomes - O que significa fazer parte da “Team Brothers”?
Tamires Tratora - Para mim, é um privilégio enorme, aqui eu não tenho só parceiros de equipe, e sim reconstruir uma família. Tudo que eu precisar, qualquer coisa, eles vão estar sempre do meu lado, nos momentos ruins, ou bons, nos momentos difíceis, nos momentos de choro, de alegrias. E isso me trouxe bastante força também, porque a parte familiar, uma brigalhada atrás da outra. Às vezes há discussões entre familiares e parentes, aqui na academia não existe isso. Tenho aqui uma família completa, uma família feliz e sou muito grata. Foi aqui que eu me levantei, que eu estou me reconstruindo. Sou a única menina que se levantou na parte do MMA, também fazendo o meu nome. Eu pretendo trazer muitas mulheres para cá para tá representando essa equipe, porque aqui eu tenho muito orgulho dela.
Gabriella Gomes - Quem é Tamires Vidal? O que mudou da antiga Tamires para a atual?
Tamires Tratora - Eu acho que fiquei mais madura com o esporte. Criei mais disciplina. Quando eu morava com minha mãe, eu não tinha disciplina, era rebelde. Através do esporte eu encontrei a disciplina, aprendi a respeitar mais, saber a hora que eu tô certa, que eu tô errada. A Tamires tem um coração muito bom, quer ajudar todos, às vezes esquece dela mesmo. Eu mesma falei com meu mestre: 'Quando eu chegar no UFC, eu quero ajudar as pessoas carentes, quero fazer uma ONG que possa ajudar as pessoas de rua. Sempre penso nas crianças de rua, nas pessoas de rua. Eu passo na rua, aqui onde moro, no Centro de Niterói e vejo as crianças dormindo sem ter o que comer, pedindo dinheiro para tentar sobreviver, isso me dói o coração. Eu queria poder pegar elas e carregar para dentro da minha casa, mas não é assim. Tudo tem a hora certa, tem um momento certo de querer ajudar. Quando chegar no UFC, que é o meu objetivo, vou ajudar porque quero ajudar o próximo.
FICHA TÉCNICA
Fotografia, reportagem e pós-produção: Gabriella Gomes
Entrevistada: Tamires Vidal
Monitoria e redes sociais: Samanta Rocha Lima
Supervisão Editorial: Rostand Melo e Ada Guedes
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