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A conquista de ser a primeira e o fardo de ser a única: um relato de Jô Oliveira

Foto do escritor: Cecília SalesCecília Sales
Foto da vereadora Jô Oliveira de Campina Grande com expressão séria
Foto: Cecília Sales

Criada em um ambiente fundamentado na coletividade e solidariedade feminina, a trajetória de Jô Oliveira é traçada através do laço familiar entre mulheres negras e trabalhadoras domésticas. Carregando consigo e em si as lições de casa, onde o diálogo e a participação eram valores fundamentais, Jô representa, com orgulho, uma voz moldada pela união e parceria das mulheres que a criaram. Personifica um exemplo de conquista para a população feminina e negra da Paraíba, ao mesmo tempo em que sustenta o fardo de ser a primeira e, até o momento, única mulher negra a ocupar um assento na Câmara de Vereadores na cidade de Campina Grande–PB.


Nas eleições 2024, Jô foi reeleita vereadora pelo PCdoB e se consagrou como a candidata a mais votada de Campina Grande com 5.178 votos. Ao todo, oito mulheres foram eleitas para a próxima legislatura na Câmara Municipal, de um total de 23 vagas. Entre elas, Jô é a única preta. Aninha Cardoso (Republicanos), eleita para o primeiro mandato, se declarou como parda. As demais vereadoras eleitas são todas brancas. A posse será em janeiro de 2025.


Esta entrevista apresenta a complexidade e as dificuldades de sua vivência política sendo a única mulher negra em um ambiente político majoritariamente masculino e branco, convidando o público leitor a refletir sua presença na política como um marco no início da luta pela representatividade de mulheres negras na política paraibana.

Foto da vereadora Jô Oliveira de Campina Grande rindo
Foto: Gustavo Alexandre

Seu interesse pela política e por lutar por causas sociais surgiu quando, onde, por quê?


Então, eu fico me perguntando, né? Quando, meu Deus? Para que eu inventei isso? Já me perguntei várias vezes: o que eu estou fazendo aqui, gente? Eu não poderia estar no meu doutorado? Que 'molesta eu inventei? Mas, enfim, eu acho que surge exatamente no momento em que eu conheço os partidos políticos, através do movimento estudantil.

Eu venho de uma formação evangélica, criada numa Assembleia de Deus, onde nada era permitido, onde tudo era pecado. Chegar na universidade foi a possibilidade de conhecer outras coisas, outras vivências –que inclusive combinavam mais com a minha dinâmica de casa. 


Foi interessante, porque eu lembro que em algum momento eu percebi: a gente sempre constrói as atividades –sejam elas nos movimentos estudantis ou nos muitos espaços em que a gente está,– mas não somos cotadas para ser essas figuras que estão à frente.

Num processo eleitoral, se vamos escolher o nosso candidato, ele vai ser sempre uma figura referenciada no corpo masculino. Nós nunca somos cotadas, a não ser que não tenha um número suficiente de candidatos [para escolher], aí, “ah! Então vamos ver aqui com as mulheres”. Isso, infelizmente, não é diferente em muitos espaços.


E como você chegou à decisão de se candidatar como vereadora, como foi o processo de tomada de decisão?


Pensar em ocupar um lugar na política partidária não foi uma coisa que projetei.

Eu nunca imaginei estar nesse lugar de ser ‘a figura’ a ser candidata. A gente sempre se soma ao processo dos outros. 


Em 2014, 2015, por aí, a gente [do movimento estudantil] começou a acompanhar mais de perto a construção de candidaturas políticas, e pensamos que talvez a gente pudesse pensar em um nome que fosse o nosso nome, porque não estávamos na política. E quando a gente começou esse debate, alguém disse: “então vamos pensar também em um projeto político que seja nosso, desse campo, de gente que articula o movimento de mulheres, o movimento cultural, que articula a juventude, já que a gente vem desses lugares!”


Então, pensamos: vamos fazer um grupo? Vamos! Mas, quem são as pessoas, como a gente faz, quem é que a gente tem, quais lugares a gente tem de pretensão política, qual partido que não fuja de alguns dos princípios que consideramos fundamentais, que não negociamos de jeito nenhum para além dos direitos das mulheres, da questão da luta da classe trabalhadora, enfim, essa coisa que nos identifica do ponto de vista ideológico. E aí alguém disse, “ah, não, eu acho que [para nos representar] tem que ser uma mulher, porque a gente não tem essa mulher, não temos essa figura. Não temos uma mulher que nos represente, e a gente não tem também figuras negras, então acho que tem que ser Jô,” e eu disse: não! Não tem que ser eu, não! [Risos]


Então, de cara, quando você recebeu a proposta, você sentiu uma pequena intimidação pessoal?


Pequena porque você é eufêmico! [Risos]

De fato, primeiro tem aquele susto inicial, ‘mas eu?,’ nós não somos projetadas... Eu digo nós enquanto mulheres e, em especial, mulheres negras. Nós não imaginamos que esse lugar é nosso. A gente nunca imagina isso, ok? Foi um impacto, sim, mas claro que há dúvidas, inquietações que a gente pode passar para qualquer desafio que a gente se lance! Até porque isso também passa pela compreensão que a gente tem da política. Quem está à margem dela sempre acha que é um lugar muito ruim. Nos ensinam que esse é o lugar da corrupção, que esse é o lugar de interesses pouco republicanos, que quem está ali está para pensar no seu próprio interesse, etc. Quando a gente pensa no ambiente da política, é um ambiente, inclusive, muito masculino, né? Branco, hétero, religioso, cristão, conservador… Mas a política, essa política com P maiúsculo, ela precisa ser coletiva, ela precisa ter outros referenciais. 

foto da vereadora Jô Oliveira de Campina Grande com a mão no queixo e expressão séria
Foto: Gustavo Alexandre
“Às vezes, é difícil ser a única.”

Qual é a maior dificuldade que você vê em ser uma mulher negra e minoria na Câmara de Vereadores?


Então, posso dizer que estou bem cansada.

O que não faltam são dificuldades, né? É o desafio de estar o tempo dizendo inteiramente o óbvio, porque lá na Câmara e em todos os espaços, a gente tem que estar trazendo essa referência histórica de ser ‘a primeira’, e eu tenho dito desde então que não dá mais para ser a única, tem que ter outras mulheres, a gente precisa que outras se coloquem, a gente precisa garantir que essas sejam eleitas, porque também não são processos simples, mas a gente precisa construir alternativas nesse sentido. Às vezes, eu digo que é cansativo por conta da responsabilidade. Não estou dizendo que a gente não faz, que a gente não cumpre com a tarefa. Mas, às vezes, é difícil ser a única.


Como você se sente nesse ambiente majoritariamente masculino, branco e conservador? 


Injuriada. O tempo inteiro.

É diferente do cansaço. Porque o cansaço se dá, por exemplo, num dia como hoje. A conversa que estou fazendo com vocês é a terceira, tem mais duas depois. Fora as que a gente só fez na Câmara, fora a audiência que a gente participou, fora a atividade que participei no TRT. O cansaço é muito mais pela necessidade que a gente tem de cumprir uma agenda. As pessoas entendem que a gente pode fazer determinados debates e tal, tal, tal, mas ficar o tempo inteiro dizendo o óbvio [em ambientes como esse], além de cansativo, deixa a gente irritada.


Um dia desses, a gente teve uma atividade lá na câmara sobre aquele famigerado empréstimo. Pronto, uma sessão à noite. Quando vou entrar, o cara bota a mão no meu peito e diz: “vai ‘pra’ onde?” E eu disse: para onde o quê? Eu vou para a sessão! “Não, aqui só entram vereadores,” “Oxente, eu não entro, não?,” “Não. Aqui só entra vereador.”


Meu amigo, não tenho que estar discutindo com o funcionário da casa, que não sabe que eu sou vereadora. Por que ele não entende que esse meu perfil é um perfil de vereadora? Entende? Entende que às vezes isso deixa a gente irritada?


Vou falar de vocês agora [risos]. Quando fui eleita em 2020, alguns jornalistas disseram: “Nossa, parabéns pela entrevista! Muito boa! Você, inclusive, sabe falar, né?” Nossa! É cansativo! 

É o tempo inteiro as pessoas duvidando da sua capacidade, do que você sabe falar, do que você sabe fazer, se você tem condições [de falar sobre determinados assuntos] ou não.


foto da vereadora Jô Oliveira de Campina Grande com a mão esquerda no rosto expressando indignação
Foto: Cecília Sales

Você já se sentiu silenciada na Câmara?


Oxe, direto!

Se você for olhar as nossas redes sociais, todo e qualquer pronunciamento meu, na tribuna, tem uma série de barulhos lá atrás. Numa sessão passada, eu tinha chegado de Salvador, e estava relatando as reuniões e atividades que tive com nove ministérios acerca de questões sobre a saúde da população negra e questões políticas para a população negra de modo geral, porque foi no 21 de março, que é o dia internacional da luta pela eliminação da discriminação racial. O que acontece? Estava todo mundo [entre os vereadores] falando; começou a sessão; uma figura foi falar antes de mim e todo mundo ficou em silêncio. Quando eu subi para falar, começou o bafafá! Começou uma risada, uma conversa, e aí eu pedi silêncio. Continuou. Pedi ao presidente meu tempo de volta e falei mais 10 minutos. Já tinha falado oito, deu uma esculhambação, falei mais 10!

foto da vereador Jô Oliveira de Campina Grande com semblante irritado e indignado
Foto: Cecília Sales

Por que é importante a presença e participação de mulheres, pessoas negras e outras minorias sociais na política?


Eu coloco essa questão da seguinte forma: eu começo questionando sobre esse lugar que nos colocam como minorias. A gente trata como extraordinário ser a primeira mulher negra eleita. Na verdade, não é novidade para as outras pessoas que já desejaram chegar nesse lugar também. Então, o que aconteceu até aqui para que essas pessoas não conseguissem? A gente precisa falar sobre como a sociedade está estruturada para receber esses corpos que fogem do padrão [normativo] para qualquer espaço de poder. E por que é importante falar sobre minorias? Porque sempre que a gente vai tratar da presença das mulheres na política, se diz “vamos tratar agora das pautas minoritárias," mas não são pautas minoritárias, porque as mulheres são a maioria da população. As pessoas negras são a maioria da população. Se a gente for falar das questões LGBTQIA+, ‘ah, também é uma pauta minoritária.’ Não é. Qual é o percentual da população que está dentro desse recorte? Estamos falando de milhões de pessoas!


Não é fácil, porque a gente também não pode romantizar a luta, né? Mas é necessário. Se a gente não estiver aqui, quem é que vai falar, quem é que vai fazer? Ontem a gente não estava, hoje a gente está, e amanhã a gente pode estar em maior número. Basta a gente entender que nada do que a gente tem até aqui foi nos dado de graça ou com facilidade. A gente precisa se colocar à discussão, a gente precisa fazer esse debate. Eu acredito que o importante é estarmos aqui.


Qualquer movimento que a gente tenha no ambiente da política, nós somos os primeiros a sermos afetados.

Para finalizar, qual é a sua visão ideal para a política? 


Que a gente tivesse uma representação nos espaços, por exemplo –falando da Câmara dos Vereadores– que a gente tivesse os 23 assentos divididos proporcionalmente sobre quem está na população, seja ela preta, pobre, branca, LGBTQIA+, jovens, pessoas com deficiência…

A gente precisa dessa diversidade, e não apenas por praxe. Não para dizer, ‘ah, nós somos inclusivos e temos uma pessoa negra,’ mas até onde essa representação de fato responde por esse conjunto da sociedade, por essas ditas minorias que são milhões, e que nem sempre têm um espaço de visibilidade, nem sempre têm um lugar de fala, nem sempre têm essa construção. É essa a política que eu gostaria que experimentássemos no futuro não tão distante, mas a gente precisa lutar para criar esse lugar plural.



 

EXPEDIENTE

Texto: Cecília Sales

Entrevistada: Jô Oliveira

Supervisão editorial: Ada Guedes e Rostand Melo


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