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Da ausência ao recomeço: A vivência do abandono parental

  • coletivof8noite
  • 21 de mar. de 2020
  • 6 min de leitura

Entende-se por abandono parental a negligência dos pais em relação aos filhos, crianças e adolescentes, com ausência de afeto e deveres garantidos pelo art. 227 da Constituição Federal. Embora o abandono seja praticado também por mães, no Brasil, em 2023, dos 2,5 milhões nascidos, 172,2 mil deles têm pais ausentes — quantidade 5% maior do que o registrado em 2022, que registrou 162,8 mil. Os dados são da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil)/Portal da Transparência do Registro Civil.


Na prática, isso representa um número quase seis vezes maior de mães solo do que de pais solo no Brasil. De todos os adultos que moram sozinhos com os filhos, 86,4% são mulheres.


Nascido e criado em Montadas, cidade no interior da Paraíba, Davi Souza (23), é fruto dessa estatística que assola milhares de brasileiros. Com histórias de vida distintas, Vitória Teixeira (20), e Francisca Carneiro (68), compartilham de realidades semelhantes. Sob outra perspectiva, Jéssica Cavalcante (31) e Carlos Batista*(40), relatam o impasse de ser mãe e pai solo após o abandono dos seus companheiros e como isso afetou o desenvolvimento dos filhos


CONCEITUANDO ABANDONO

Segundo o psicólogo Ebson Barbosa, se caracteriza como abandono parental atos de negligência, afastamento ou falta de cuidado dos seus genitores no sentido de não proporcionar os meios necessários para que se atinja alguns marcos no desenvolvimento da criança ou adolescente. As consequências como impactos emocionais na trajetória de vida da criança e adolescente podem refletir até mesmo na idade adulta.


Para a advogada Damaris Ester, no âmbito jurídico, o abandono parental acontece quando um dos pais deixa de cumprir os deveres básicos com os seus filhos, quer seja financeiro, emocional ou educacional. “Não estamos falando simplesmente de dinheiro, mas a gente tá falando também da questão sentimental, emocional e do cuidado. Não é somente não pagar uma pensão ou se ausentar da vida dessa criança ou adolescente, mas também a ausência na criação e educação”, afirma.


INFÂNCIA ROUBADA


O abandono não está relacionado somente à falta de um pai ou uma mãe, mas retira da criança algo mais profundo: a infância. Crianças marcadas pelo abandono carregam feridas emocionais e psicológicas que o tempo não apaga. Davi, com oito irmãos, cresceu sem esse alicerce e em meio a dificuldades e violência. As agressões do pai à família o levaram à independência precoce, começando a trabalhar ainda cedo para enfrentar a vida adulta.


“Ele era muito violento, se expressava de forma muito rude. As agressões tanto com os filhos quanto com nossa mãe, não eram só violência física, era verbal também. Tivemos uma infância marcada por um processo repleto desses fatores: violência e ausência paterna.”

Já a comerciante Francisca Carneiro, viveu o abandono na infância devido ao alcoolismo da mãe, que a deixou junto com seus irmãos nas mãos de vizinhos da redondeza. Conhecida como Dona Chiquita, ela lamenta o tempo perdido e a responsabilidade precoce com os irmãos. “Minha mãe bebia muito, muitas vezes ela fazia a gente comprar bebidas, mesmo sendo crianças. Após isso fui abandonada, perdi minha infância cuidando dos meus irmãos, foi uma época muito difícil, não desejo pra ninguém.” Hoje, Chiquita vive uma relação próxima com a mãe e cuida de sua neta de cinco anos.


Ambas as histórias revelam uma infância desestabilizada, cujas consequências, é o medo, a insegurança e a independência precoce. O que para o psicólogo Ebson traz impasses para a vida adulta.


Foto: Jonnatan
Foto: Jonnatan

ABANDONO ATRAVÉS DO AFETO


Segundo dados registrados pelo Censo Demográfico 2022, 10.321.771 de casas são chefiadas por mulheres e apenas 1.614.739 por homens que moram somente com os filhos. Vitória Teixeira é um exemplo disso, ela relata o processo que enfrentou na sua adolescência por falta de afeto paternal e também pelas histórias que ouvia da mãe:


"Desenvolvi uma barreira emocional, não queria ter contato com figuras masculinas. Nunca me senti à vontade para abraçar um tio ou considerar meu padrasto como pai. Lembro que via minhas amigas na escola, tendo seu primeiro namorado e eu nunca imaginei fazer parte daquilo, porque eu tinha uma visão distorcida em relação à figura masculina.”

Davi Souza, também compartilha os efeitos da ausência paterna em sua vida emocional: "Me expresso muito pouco, demonstro pouca emoção e às vezes sinto que em determinadas situações a presença paterna faz um pouco de falta. E mesmo meu pai estando ali, de corpo físico, ele era totalmente ausente em todos os sentidos. Hoje, acho que o trauma seria em relação a expressar sentimentos."


Essas histórias revelam que a ausência paterna não se limita a uma falta física, mas se manifesta de forma silenciosa nas inseguranças, nos medos e na dificuldade de se relacionar com outras pessoas.


Foto: Sonalle Eduarda
Foto: Sonalle Eduarda

TRAUMAS VIVENCIADOS


A atuação das mães ou pais que, por consequência do abandono, tornam-se responsáveis integrais pelo cuidado dos filhos, geralmente é imperceptível. O papel de quem assume a responsabilidade sozinho(a) se torna essencial no relacionamento e formação da criança, porém, é encarado com dificuldades e sobrecargas, devido a falta de apoio.


A assistente de marketing, Jessica Cavalcante, presenciou o crescimento de seu primeiro filho sem a presença e atuação do ex-marido. Após a separação, a atenção e carinho proveniente do pai, virou inexistente na vida do garoto. “Eu sempre fui a mãe e o pai do meu filho desde que nasceu. Todas as responsabilidades com saúde, escola e educação, eram de minha responsabilidade”, afirma.


A cantora lamenta o efeito que a vivência trouxe no rendimento da criança e passou a procurar ajuda psicológica quando seu filho começou a ter alterações em seu comportamento, principalmente escolar.


De mesmo modo, mas com papéis invertidos, Carlos Batista* relata como foi a criação de suas duas filhas, de 20 e 14 anos. Uma realidade parecida a sua, pois cresceu sem a presença de seu pai, sendo criado pelo avô. Para Batista*, os momentos marcados por tristeza para suas filhas eram nas datas comemorativas.


“No dia das mães elas sofriam bastante e eu sofria com elas. Sem a mãe ali por perto, e minhas filhas vendo as outras coleguinhas falando da mãe, era uma facada no meu coração e infelizmente não pude fazer nada sobre isso.”

AJUDA E RESSIGNIFICAÇÃO


Um dos desafios do cenário vivido é lidar com os impactos que o abandono parental causa. Apesar das dores, encontramos histórias como a de Davi e Vitória, que embora existam feridas emocionais, procuraram caminhos de reconstrução e ressignificação.


A saída que o empresário encontrou para superar as feridas e traumas, foi usufruir da educação por meio do cultivo da leitura e participação em palestras voltadas às vivências sociais e áreas de empreendedorismo.


“Diria que o estudo foi o que me permitiu pensar fora da caixa. Através de palestras sociais e com foco em empresas, consegui dar a volta por cima. Hoje tenho minha empresa e me orgulho por isso.”

Vitória, encontrou forças através da fé, participando de uma comunidade católica onde se sentia apoiada e com o amparo necessário para superar e seguir. Já Dona Chiquita, hoje é mãe, avó e cuida de sua neta de quatro anos, fortalecendo uma relação de afeto com sua mãe Isabel, de 97 anos.


Embora haja diversas formas de transformar a tristeza em força, a psicoterapia e a assistência social são importantes ferramentas no processo de ressignificação, são espaços conduzidos por profissionais capacitados no desenvolvimento da socialização e do fortalecimento emocional. Esses atendimentos oferecem uma escuta acolhedora que ajudam o indivíduo a compreender sua história, resgatar sua autoestima e construir novos sentidos de vida.


Em caso da identificação de um possível abandono parental, as Instituições públicas podem oferecer suporte/apoio legal e necessário. O primeiro passo é realizar uma denúncia junto à Delegacia da Criança e do Adolescente, ou conselho tutelar e procurar assistência em Centro de Referências de Assistência Social (CRAS).


O Disque 100 é outra alternativa, uma vez que encaminha aos órgãos para apurar a denúncia de forma anônima e garante proteção às vítimas.


*Nome fictício para proteger a identidade do entrevistado

EXPEDIENTE

Produção: Jonnatan e Sonalle Eduarda

Supervisão Editorial: Rostand Melo e Ada Guedes

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Parabéns!!

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Maria José
28 de out.
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Matéria muito pertinente parabéns aos envolvidos

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