SUJEITOS INVISÍVEIS
Quem nunca ouviu ou esteve presente em uma discussão sobre redução da maioridade penal? Um tema delicado, mas que tem uma cobrança severa, por uma boa parte da sociedade, que alega que é necessário punir por igual adolescentes que agiram contra a lei.
Cada faixa etária carrega consigo inquietudes, conflitos, insatisfações e inseguranças que podem permanecer até a fase adulta, mas muito menos acentuada do que na adolescência, fase predominante desses tipos de situações. A diferença entre um adulto que está passando por conjunturas como está para um adolescente, é sua maturidade, é sua experiência de vida e a carga emotiva de como se relaciona com alguns conflitos, que é alheio na adolescência, a fase das insatisfações.
A ausência dessa maturidade é ponto marcante dos adolescentes que cometem algum ato infracional, que ainda se une a condições difíceis de moradia, problemas com vínculos familiares e até de abusos, além de outros fatores como a influência do meio onde vivem, defasagem escolar, preconceitos e pobreza. E não esquecendo do recorte de classe e raça, já que a população negra é a que mais sofre com a desigualdade e com a violência, entre tantos outros fatores que condenam o futuro desses adolescentes, roubam seus sonhos e os jogam precocemente na criminalidade.
Mesmo não tendo o mesmo tratamento que um adulto, será que esses adolescentes estão de fato impunes pelos atos infracionais cometidos?
Com o avanço nas políticas públicas e com o Estado e sociedade se responsabilizando pela proteção desses indivíduos em desenvolvimento, muitas medidas foram adotadas visando garantir essa integralização da proteção infanto-juvenil.
A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, foram como um divisor de águas nesse quesito. Segundo o relatório da pesquisa nacional das medidas socioeducativas em meio aberto no sistema único de assistência social, as instituições e modelos anteriores de atendimento foram amplamente marcados pela violência, tortura e sofrimento às crianças e adolescentes, principalmente entre os mais pobres e não brancos. O reordenamento desses serviços de acolhimento foi ajustado e este concebe a família como unidade básica da ação social e considera a criança e o adolescente de modo indissociável de seu contexto familiar e comunitário.
NA TERRA DA RAINHA
Para entender mais um pouco da situação desses adolescentes envolvidos com ato infracional, acompanhamos um grupo que cumpre Medida Socioeducativa (MSE) em Liberdade Assistida (LA) no CREAS I, Centro de Referência Especializado da Assistência Social, localizado no bairro do Catolé, em Campina Grande.
O CREAS é uma unidade pública da Assistência Social que atende pessoas que vivenciam situações de violações de direitos ou de violências e executa a política de socioeducação com os adolescentes autores de ato infracional. Portanto, dispõe de uma equipe técnica composta por pedagogos, psicólogos, assistentes sociais, educadores sociais e advogados para acompanhar o adolescente durante o cumprimento da medida e responsabilização do ato infracional.
As medidas socioeducativas são medidas pedagógicas e repreensivas voltadas para indivíduos na faixa etária de 12 a 18 anos (podendo se estender até os 21 anos) acusados de cometer algum ato infracional perante a legislação brasileira, conforme o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo.
Podemos defini-las como: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e até internação em estabelecimento educacional, como podemos ver na cartilha dos caminhos da socioeducação na Paraíba. Os adolescentes cumprem medidas de seis meses a um ano, com duração determinada pelo Juiz da Infância e da Juventude, conforme a gravidade do ato infracional. De acordo com o desempenho dos adolescentes durante a medida, o tempo pode aumentar.
Na Paraíba, segundo o portal G1, também em 2018, havia o registro de pelo menos 410 adolescentes internados para cumprimento de medida socioeducativa.
Campina Grande possui três CREAS espalhados para atender públicos de diferentes regiões da cidade. O público alvo do CREAS I são os da zona leste, zona sul e o distrito de Galante.
Atualmente, onze adolescentes cumprem medidas socioeducativas no CREAS I, sendo desse número apenas uma menina. As idades deles variam, sendo mais da metade com 17 anos, um com 18 anos e quatro socioeducandos com idade entre 14 e 15 anos. Ainda, dos onze adolescentes apenas dois são brancos e nove são negros.
Diferentemente de uma punição igualitária no caso de uma redução da maioridade penal, as medidas socioeducativas dão uma nova chance aos adolescentes, estimulando eles a mudança, a ressocialização e se enxergar como protagonistas de suas vidas. No CREAS I, os adolescentes desenvolvem diversos tipos de atividades, desde a cursos técnicos que possam estimular a descobrir alguma habilidade profissional, tarefas artísticas e palestras sobre os mais variados temas da sociedade.
Dentro das diversas atividades, dois projetos chamam atenção: O de Graffiti e o da construção de bebedouros e comedouros para animais de rua, ambos utilizados em pró da causa animal. Podemos acompanhar de perto os adolescentes na execução dos trabalhos e pôde-se perceber o engajamento e o reconhecimento de determinadas aptidões por parte dele.
Durante a oficina de Graffiti, o oficineiro provocou os adolescentes com a criação de uma arte com a primeira letra dos seus nomes. Foi perceptível a criatividade de boa parte deles e o destaque para a sensibilidade de um adolescente ao fazer o “M” do seu nome com uma riqueza de detalhes. Muitos deles relataram que nunca tiveram contato com a arte do graffiti, e que sim, já tinham tido contato com pichação. Se sentiram atraídos pela arte, mas tinham receio por serem confundidos com pichadores e temiam responder por isso, já que o estereótipo deles poderia gerar essa confusão.
Conversamos com a pedagoga Dilany Rocha, que falou da importância do projeto da causa animal em direcionar um olhar mais sensível e cuidadoso nos socioeducandos, já que esses animais assim como muitos deles, estão à margem da sociedade e sob um olhar de repulsa social.
“Eles já vêm também de espaços de muita exclusão, de muito preconceito, dificuldades... E tem mais: muitos deles desconhecem afeto e desde muito cedo convivem com a criminalidade”, comenta.
A pedagoga ainda conta de uma socioeducanda que durante o cumprimento da sua medida no desenvolver do projeto, numa ida ao centro de Zoonoses, se sensibilizou com uma gatinha cega e a adotou. A pedagoga Ana Maria Honório, também que acompanha os adolescentes, pontuou:
“a sociedade vê de fora uma coisa que na realidade é outra totalmente diferente. A forma muitas vezes que esses meninos vivem acaba conduzindo-os para criminalidade. É preciso apresentar opções e oportunidades para eles. É isso que fazemos aqui. É difícil, mas não impossível”.
Em conversa, ficamos sabendo das dificuldades passadas por estes adolescentes e como o vínculo familiar e da comunidade interfere no comportamento deles. A maioria deles estão distantes da escola e a função das medidas também é de reinserir eles de volta a vida escolar.
As pedagogas ainda comentaram do quanto eles não acreditam no potencial próprio e da baixa estima, e que isso muitas vezes é um obstáculo para desenvolver alguma atividade, pois é frequente um “eu não consigo”, “eu fiz errado”. Novamente a pedagoga Ana Maria comenta:
“Outra grande dificuldade deles é se abrir, pedir ajuda. Percebemos pelo convívio, pelo jeito, que estão passando por algo e as vezes esse algo é até necessidade básica em casa”.
A inclusão social para o desenvolvimento das capacidades do indivíduo e a garantia da dignidade é fundamental, olhando com uma visão crítica para as especificidades da adolescência e as diferenças de classe e raça, já que essa população é mais exposta às violações dos seus direitos fundamentais. Existe correlação entre os indivíduos que vivem em um contexto de violações dos seus direitos (além de múltiplas violências) e a implementação das medidas socioeducativas.
É função da sociedade reinserir e não excluir esses adolescentes. É necessário que ao invés de um julgamento igualitário a de um adulto, que possa vir a torna-los de vez dentro do mundo do crime, eles tenham novas opções e possibilidades de se reconhecerem como pessoas capazes de mudanças e melhorias.
FICHA TÉCNICA
Fotografia e reportagem: Aline Costa, Ivaneide Santos, Oscar Borges e Samya Amado
Monitoria: Ester Bezerra
Supervisão editorial: Rostand Melo
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