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  • BIANCA MENEZES DA SILVA

Laura Brasil: Feminilidade “sem nome” e além do padrão binário


Plano fechado no rosto de Laura com as duas mãos no rosto. Foto em preto e branco
Foto: Nícolas Almeida

Laura Brasil é uma ativista travesti e pansexual que emergiu como uma voz poderosa na Paraíba. Sua jornada começou com uma infância marcada por dúvidas sobre sua identidade de gênero, enquanto explorava brincadeiras escondidas no closet da avó. A solidão permeou sua adolescência, já que enfrentou a incerteza de viver sua verdadeira identidade de gênero. No entanto, ela contou com o apoio inabalável da mãe, da avó e da tia, as matriarcas de sua vida, que a ajudaram a se distanciar das expectativas da família de seu pai e da dinâmica da família de sua mãe.


Ao longo de sua jornada, Laura abraçou sua pansexualidade, mantendo relacionamentos com pessoas de diversas identidades de gênero. Ela se tornou uma defensora apaixonada da comunidade LGBT+ e trabalha incansavelmente para construir um ambiente mais inclusivo e seguro para todos. Desafia a ideia de que a família e a sociedade precisam se encaixar em estruturas rígidas, buscando a desconstrução de normas, que para muitos são tóxicas.


Hoje, Laura é reconhecida como uma voz influente em Campina Grande, onde atua ativamente na estruturação e efetivação de políticas em prol da comunidade LGBTQIAPN+. Sua jornada pessoal de autodescoberta e aceitação tornou-se uma inspiração para muitos, enquanto ela continua lutando por um futuro mais inclusivo e diverso, com ênfase em construir um espaço onde todos possam viver autenticamente.




Silhueta da Laura com a ponta do dedo encostando no nariz sob um fundo rosa
Foto: Johan Vitor

"Acho que eu penso na minha transgeneridade, eu penso em uma feminilidade sem nome, tem um debate muito presente hoje em dia sobre infância trans"

Como foi sua jornada pessoal para compreender e abraçar sua identidade de gênero?


Na infância, no interior do Crato, Ceará, explorei minha identidade trans em meio à exuberante natureza. Questionamentos de gênero surgiram cedo, e na isolada área onde cresci, encontrei refúgio para experimentar minha feminilidade. A "mulher sem nome" tornou-se minha âncora em um ambiente tradicional. Hoje, compartilho minha jornada como inspiração para outros que também exploram suas identidades de gênero únicas.


Como você se envolveu inicialmente na defesa das causas LGBTQIAPN+?


Nasci em uma família acolhedora e aberta a experimentações sociais, com um primo gay. Minha infância foi marcada por viagens e valores de ativismo. Aos 13, comecei a me envolver em projetos sociais, explorando minha identidade, embora inicialmente adotasse uma aparência cisgênera por sobrevivência. Na universidade, o ativismo ampliou minha compreensão de gênero e sexualidade, levando-me a abraçar minha identidade trans. O ponto de virada foi a ocupação da universidade com a comunidade LGBTQ+, desafiando o sistema acadêmico e marcando minha jornada de autodescoberta.


Foi na universidade que deu o 'start' em você, momento em que colocou a cara a tapa?


Na universidade, comecei um processo de transformação, mas a coragem já estava presente ao sobreviver em uma estrutura cisgênera. Minha infância e adolescência me deram uma base de experiências e ativismo social. Vivi em diferentes lugares antes de chegar a Campina Grande, onde tudo se encaixou, mas minha jornada como Laura foi construída ao longo do tempo, bebendo de diversas fontes e experiências, incluindo meus momentos secretos de exploração de gênero na infância.


Você coordena, há três anos, o Centro Estadual de Referência LGBTQIAP+ Luciano Bezerra. Como se tornou coordenadora do Centro?


Em Campina Grande, integrei o Grupo de Intervenções e Tecnologias Sociais da UEPB (NINETS), liderado pela professora Jussara Carneiro, focando em projetos para a população LGBT, incluindo quilombolas, ciganos e praticantes de religiões afro-ameríndias. A atuação interseccional levou ao Coletivo Gaia, que articulou iniciativas sociais e colaborou com a Secretaria de Estado da Mulher e Diversidade Humana. Aceitei o convite para trabalhar na secretaria, mas a transição de ativista para servidora pública foi desafiadora. Minha missão agora é criar um ambiente mais acolhedor para a infância trans e curar feridas passadas.

Laura com o celular na mão arrumando o cabelo
Foto: Johan Vitor

Quais são os seus planos e esperanças para o futuro da comunidade?


Ao assumir o centro de referência, me angustiou o baixo número de usuários, apenas 200 em 2 anos. Minha missão era torná-lo uma verdadeira referência, consciente de que o reconhecimento é o primeiro passo na defesa dos direitos. Minha motivação veio de experiências pessoais de transfobia na universidade, onde lutei pelo uso do meu nome social. Após 5 anos, temos mais de mil usuários, mas ainda enfrentamos desafios de falta de reconhecimento e individualismo entre a população LGBT, que espera serviços sem compreender o processo de construção e luta por esses direitos.


Em sua jornada, quando percebeu que seu corpo não era apenas uma representação de sua resistência, mas também se tornou uma declaração política?


A ideia do "eu político" sempre me incomodou, pois parece sugerir que uma única pessoa representa uma causa. Precisamos questionar por que apenas nós devemos liderar e disputar. O ativismo exige equilíbrio entre a causa e o autocuidado, e pensar no futuro é essencial. Tenho medo do que acontecerá quando não estivermos aqui, mas também desejo explorar novas perspectivas de atuação, pois o debate deve ser plural e evoluir constantemente.


Sua opinião sobre a sociedade aceitar nomes artísticos e não aceitar nomes sociais.


A materialização de processos e identidades é frequentemente restrita, delimitada por normas e expectativas. Quem desafia essas fronteiras enfrenta questionamentos e incompreensões. A cisgeneridade muitas vezes é percebida como a "norma", e as pessoas trans são vistas como "farsas". Isso levou ao desencanto com o espaço acadêmico e a reflexão sobre o papel da travesti na sociedade, mesmo que sua aparência possa sugerir o contrário. A tensão entre a existência e a não existência é constante, mas a busca por possibilidades persiste.

Quais são os desafios específicos enfrentados por mulheres trans na Paraíba?


A hipocrisia prevalece em relação às contradições afetivas e identitárias. Embora as dissidências ocorram nas relações, o debate público enfrenta estigmatização. É essencial desmontar barreiras, abraçar a educação pelo diálogo e questionar normas de gênero. Travestis podem influenciar perspectivas, subvertendo a estrutura cisgênera, mostrando que a identidade não se limita a órgãos genitais. Essa subversão é poderosa, provocando reflexões e mudanças necessárias.



“Mas quem disse que o corpo precisa ser inteligível dentro do padrão binário?”

Como a falta de políticas públicas abrangentes para apoiar cirurgias de afirmação de gênero afeta o bem-estar da comunidade?


A cirurgia de afirmação de gênero não é uma mutilação, mas a sociedade tende a enxergá-la assim devido a estigmatização das pessoas trans. Isso pode ser visto como uma imposição patriarcal de corpos lineares. A trajetória das pessoas trans passou por criminalização e patologização, limitando sua autonomia e subjetividade. A busca por corpos dentro do padrão binário é questionada, pois ninguém deveria ser condicionado a padrões corporais e, mesmo após cirurgias, a sociedade muitas vezes ainda nega a identidade das pessoas trans.


Conte mais sobre niciativas e programas do centro de referência.


Na Paraíba, estamos trabalhando na implementação de políticas que proporcionem um ambiente seguro para as pessoas vivenciarem seus processos com dignidade. O serviço emprega membros da comunidade LGBTQIAPN+ em diversas funções, refletindo um compromisso genuíno em entender suas necessidades. Essa abordagem envolve a coleta de dados sociodemográficos detalhados para criar políticas adaptadas às diversas nuances da comunidade, formando a base de todo o serviço.


Como as pessoas chegam até o centro ou ficam sabendo da existência dele?


O Centro de Referência é de acesso direto, sem a necessidade de encaminhamento, visando o cadastramento primário para fornecer referências iniciais de segurança. Também facilita o acesso virtual, expandindo o alcance do serviço. A integração com outros equipamentos da Secretaria da Mulher e políticas já existentes busca a integralidade do atendimento, embora o objetivo final seja que políticas afirmativas não exijam centros específicos para a população LGBTQIAPN+.


Confira mais imagens do ensaio no slideshow:


Como a sua família reagiu quando você compartilhou a sua identidade de gênero?


Foi um processo muito solitário, pois enfrentei muitas incertezas e dilemas morais sobre minha transexualidade sem ninguém para conversar ou entender. A terapia foi fundamental para mim, proporcionando um lugar seguro para explorar minha identidade. Minha mãe, avó e tia foram minha retaguarda, afastando a influência dos machos na família. Quando comecei a compartilhar minhas experiências de afetividade com elas, a solidão diminuiu. A morte da minha bisavó em 2018 foi um ponto de virada, quando percebi que minha mulheridade era a única opção possível, como um renascimento, mesmo sem garantias de uma vida como mulher travesti no Brasil. Construí essa base sólida e agora enfrento qualquer desafio com confiança.


Um conselho?


A participação efetiva na sociedade e a cidadania requerem uma construção coletiva do conhecimento e o compartilhamento das experiências da comunidade LGBT. Precisamos superar a divisão entre "nós" e "eles" para tornar a diversidade sexual e de gênero parte da nossa realidade cotidiana. Devemos desafiar a estrutura falida que nos impede de pertencer plenamente e nos aliena de nós mesmos. A desconstrução dessas ideias nos permitirá viver de forma mais autêntica e inclusiva, transformando pequenas ações em uma revolução silenciosa que desafia os lugares de poder tradicionais.


Veja os bastidores da entrevista no slideshow:

 

Ficha Técnica

Supervisão editorial: Ada Guedes e Rostand Melo



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